terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Carmen

Eu era apenas um garotinho italiano de 10 anos de idade quando conheci Carmen, a única mãe que eu poderia ter.
Ela havia se encantado com meu jeito sofrido, a minha magreza, meus grandes olhos azuis e meus compridos cabelos negros. Carmen não era exatamente uma mãe, mas me dava carinho. E por causa desse carinho hoje não mato pessoas como um maníaco. Ela é tão importante que me permitirei alguns minutos para contar nossos momentos juntos.
Começamos em Florença, onde eu morava num casebre com meu padrasto. Apenas com ele, pois havia matado minha mãe com as próprias mãos. Ainda acho que fez aquilo porque ela nunca iria deixar eu ser estuprado.
Quando sento para beber um bom vinho, lembro de meus gritos sendo abafados enquanto um homem nojento se enterrava em mim gritando coisas obscenas. Morávamos num lugar mal iluminado e fedendo a urina.
Eu me virava para poder sobreviver como podia, pedindo um pedaço de pão ali, alguns trocados por lá... e geralmente me davam sem nem ao menos olhar em meus olhos. Melhor. A vida de um garoto de rua era assim.
Uma vez roubei uma maçã da quitanda e o vendedor notou no último segundo. Eu devia estar lerdo naquele dia. Mas corri como nunca e a maldita fruta escapou de minhas pequenas mãos. As ruas de paralelepípedos pareciam não terminar, até que cheguei nos fundos de uma casa de shows. Melhor que isso, encontrei uma mulher de um longo vestido vermelho brilhante me fitando por detrás de um semblante superior. Seus olhos eram extremamente misteriosos e brilhavam com a pouca iluminação da rua estreita.
- Venha aqui, garotinho. - ela sussurrou. Sua voz parecia ter saído de um filme maravilhoso.
Eu não consegui hesitar nem dar um passo atrás, obedeci sem desviar o olhar dela.
- Meu nome é Carmen. - ela se inclinou e me sorriu. Meu coração se aqueceu com aqueles lábios avermelhados mostrando os dentes brancos em pura humildade.
Eu não resisti e sorri de canto.
- Eu sou Giovanni... - murmurei com timidez.
- Hmm... lindo nome para um lindo menininho. - riu com simpatia. - Deve estar com fome. Venha comer em meus aposentos.
Ela se virou e adentrou a casa de shows pela porta dos fundos. Eu a segui segurando uma ponta do vestido. Ele pinicava em meus dedos.
O salão estava cheio de pessoas, lotado de ricos e mulheres aproveitadoras, mas ninguém mexia comigo ao me verem com Carmen. Subimos uma escada coberta por um tapete vermelho e seguimos em direção a um corredor repleto de portas. Para mim na época parecia estranho, pois tudo cheirava ao casebre onde eu morava depois de uma noite de dor...
Entramos no número 19 e me vi no quarto mais luxuoso que poderia ter ido na infância. Ah, como amo minha mãe.
Havia uma cama de casal posta sobre o piso branco, um tapete caro no centro, uma poltrona avermelhada e um bar.
A mulher pegou alguns biscoitos doces nos quais eu sonhava todas as madrugadas ter pelo menos uma migalha e me deu. Não conti um susto e ela riu. Sua risada parecia de D'us. Eu sempre via crianças comendo aqueles doces do outro lado da ponte, me deixando com água na boca.
- Pode comer, criança. Tem mais. - seu sorriso rubro não se esvaía. E isso me acomodou de certa forma. Não parecíamos estranhos um para o outro apesar de termos nos conhecido há segundos atrás.
Seus cabelos castanho avermelhados ondulavam em moldura com seu rosto de traços finos e pontudos. Uma mulher de poder e imponência.
Eu pisquei e comi o primeiro pedaço do primeiro biscoito.
- Da onde você vem, menino? - ela de repente perguntou, com a mesma calma de início.
Olhei para o chão e pensei no silêncio. Talvez pudesse contar.
- Moro com meu padrasto... - respondi sem fita-la. Não era um assunto agradável.
- Hm... entendi. E sua mãe?
- ...
- Ah, desculpe. Sinto muito.
Continuei a comer os biscoitos com certa urgência. Aquilo estava me deixando nervoso.
Logo acabei de comer e limpei as mãos em minhas roupas já sujas. Foi aí que percebi que poderia estar sujando a cama, mas Carmen parecia não se importar, na verdade, ela aparentava estar gostando.
- Por que me convidou? - perguntei, depois de minutos sem qualquer diálogo.
- Eu vi algo em você. - ela sorriu e apanhou um licor no bar, despejando-o num copo. - Algo que se passa dentro desses seus olhinhos azuis sofridos. Querido, nós compartilhamos do mesmo sofrimento. Mas queremos transformar nossas vidas em obras de arte. Temos nosso próprio brilho.
As palavras de Carmen se organizaram em minha cabeça fazendo um enorme sentido pela primeira vez desde que nasci. Algo fazia sentido.
Meu desejo de sair daquele casebre e dos abusos me consumiam como fogo. E a mulher à minha frente entendia o que era querer liberdade.
- Tenho que ir... - anunciei saltando da cama.
Ela voltou-se para mim e lenta e graciosamente caminhou até mim e pegou minha mão.
- Vamos.
Seu vestido vermelho mais uma vez me ofereceu cobertura para aquele ambiente lotado com cheiro de pecado.
Quando chegamos à rua, ela se inclinou até ficar na altura dos meus olhos:
- Volte para o seu sofrimento, meu querido Giovanni... mas volte amanhã... se quiser. - beijou minha testa.
Tive vontade de abraça-la, mas o medo de amassar suas vestimentas era maior.
Girei os tornozelos e voltei para minha casa.
No caminho, encontrei a maçã que tanto tentei furtar e a juntei do chão. Uma boa lavada a tornaria boa para comer.
Naquela noite, meu padrasto não dormiu em casa e pude sonhar com o sorriso de Carmen me acolhendo como um bebê.

Hoje em dia não sei do paradeiro de meu padrasto. Saí do casebre com 17 anos, a idade que Carmen tinha quando nos encontramos pela primeira vez. Eu tive mais sorte que ela, tornando-me o que sempre quisemos: um cantor famoso nos quatro cantos do mundo.

No dia seguinte não me contive e fui me encontrar novamente com Carmen. Ela estava com um vestido vermelho justo ao corpo escultural. Seus olhos nunca paravam de brilhar. Devia ser o reflexo de sua mente de diamantes. Ela parecia feliz em me ver e me convidou para entrar.
Subimos de novo até o quarto 19 e aquele cômodo se tornou minha casa por um período de tempo suficiente para que eu pudesse determinar um lar.
- Você sabe ler? - ela me perguntou de um jeito doce característico.
Eu, ainda tímido, acenei que não. Nunca havia pisado numa escola até então, e ninguém nunca se incomodou em me ensinar. Eu era apenas uma escória social. Nada mais que isso.
Mas Carmen teve paciência e não se importou em andar contra a multidão, buscando seus livros e versos de ingressos para que eu pudesse aprender e escrever. A caneta bambeou em minhas mãos. Eu não tinha ideia do que fazer com aquilo.
E mais uma vez, Carmen me sorriu e me instruiu docemente. Deu a determinação necessária para que eu pudesse aprender em um mês, e logo depois me ensinou a cantar tão lindamente quanto ela. As dores de minhas noites sendo violado pouco importavam naqueles momentos tão simples e importantes ao lado de minha mãe. Minha amada mãe.

As portas se abriram desde que a conheci, foi um presente de D'us. E eu não passei fome quando estava com ela, pois pegou o costume de me empanturrar de comida e me fazer sair com mais comida ainda. Eu escondia embaixo do assoalho gasto de madeira, pois se meu padrasto descobrisse não iria ser nada agradável. Ficava com poeira e sujo, mas bastava limpar um pouco.
Hoje em dia ajudo muito crianças na mesma situação pessoalmente quando paro um pouco no trabalho.

Depois de quase um ano, percebi que Carmen já não usava mais vestidos colados ao corpo - estava ficando mais inchada.
- Estou esperando um filho. Ou uma filha, quem sabe - ela explicou com um sorriso doce enquanto acariciava a barriga de leve.
Eu tinha raiva de mulheres grávidas, menos de minha mãe. Então pousei minha pequena mão em sua barriga e senti um chute. Nós rimos.
- Já pensou em um nome? - perguntei.
- Primeiro pensei em Giovanna... se for menina - ela me olhou sugestivamente. - Ainda não pensei em um nome masculino. Sinto que será menina.
Então batidas na porta me sobressaltaram.
- Entre! - permitiu Carmen.
Rapidamente me pus de pé perto dela e um homem de terno, cabelos lisos e penteados, olhos amendoados, barba por fazer e pele clara adentrou o quarto. Alexchander, marido de Carmen. Outro padrasto.
Ele foi até ela e lhe sussurrou algumas coisas, me olhou de esgueira e saiu. Não gostávamos um do outro, no entanto, nos respeitávamos. Atualmente acredito que ele teria sido um bom pai para mim se eu tivesse iniciado uma conversa agradável.
Mamãe olhou para a parede absorta em pensamentos e coçou o queixo de leve.
- O que ele falou? - perguntei, após dois minutos.
Ela sacudiu a cabeça e me sorriu.
- Nada com que tenha que se preocupar.

Os meses iam se arrastando e no natal fui convidado para o banquete da ceia. Foi meu primeiro e melhor natal de verdade que já tive. Os adultos da casa me trataram como se eu fosse a única criança que já viram na vida, me deram presentes ótimos nos quais tive um certo trabalho de esconder debaixo do assoalho do casebre. Até Alexchander pareceu gostar de minha presença e me serviu o peru. Carmen comprara roupas novas para eu ir à ceia como um verdadeiro menino afortunado, sentamos juntos à mesa. Ela já estava com 9 meses de gestação.
Havia mais ou menos 13 pessoas comendo conosco e acabei me divertindo bastante. À meia noite, mamãe me levou até o familiar quarto 19 e me botou para dormir com um sorriso brincalhão nos lábios.
- Lhe acordarei depois, querido. Papai Noel só vai deixar seus presentes se estiver dormindo.
Eu assenti com a cabeça e me encolhi embaixo dos cobertores.

Quando senti seus dedos delicados em meus cabelos abri os olhos lentamente e a vi acompanhada de Alexchander. Ambos portavam uma alegria no rosto. Eu sorri também e me levantei. Descemos as escadas e árvore de natal, antes vazia, agora estava carregada de embrulhos. Havia cinco com meu nome.
Sentei no chão e hesitei.
- Vamos, abra - Effie, amiga de mamãe, exclamou para mim. - Esse rosa aí é meu. Abre o meu primeiro.
Eu ri de seu jeito estabanado e peguei o embrulho médio. Não tive ideia se devia desenlaçar ou rasgar logo o papel de presente. Carmen me ajudou e sentou junto comigo, rasgando o papel com as unhas.
Nem acreditei quando vi: um navio de brinquedo. Eu nunca havia ganhado um brinquedo na vida.
Eu o peguei entre minhas pequenas mãos e olhei para Effie agradecendo em euforia e abri os outros embrulhos com a ajuda de mamãe, que gargalhava às minhas custas. Ganhei mais brinquedos e um livro infantil. Nunca fiquei tão feliz.
- Falta os nossos - disse Carmen, me passando um pingente circular dourado e uma caixinha preta. - Alexchander fez o do pingente. Eu dei a ideia. E o da caixinha é meu.
Abri primeiramente a caixa e encontrei um anel prateado maior que meu dedo. Havia um relevo escrito "Giovanni" encima e "Carmen" na debaixo.
- Ainda é grande para o seu dedo, mas quando for mais velho ele servirá - disse mamãe. - Agora abra o pingente.
Eu alcancei o fecho do objeto dourado e o abri. Tinha dois fotos. Na esquerda era uma minha e na direita havia Carmen e Alexchander olhando para mim com alegria.
As lágrimas escorreram em minha face antes mesmo que eu percebesse e senti braços me rodeando.

Alguns dias depois, Carmen entrou em trabalho de parto. Giovanna nasceu saudável e com cabelos pretos iguais aos do pai - e foi a única coisa que herdou do mesmo.
Eu a segurei nos braços e peguei em sua mãozinha estendida. Ela gostou de mim.
- Vocês serão muito unidos um dia - disse mamãe, nos olhando da cadeira de balanço nos lançando mais um de seus sorrisos de D'us. Às vezes me pergunto se ela se divertia de verdade.

Após alguns meses, meu padrasto havia mudado um pouco de postura, claro que não para melhor. Parecia reparar mais em meu corpo. Mais silencioso e sorrateiro. Uma cobra de olho na presa. Aquilo me incomodava. E depois de cinco dias fui descobrir: ele havia me posto à venda e o comprador já tinha aparecido. Quando soube, fui correndo até Carmen quando a noite caiu, aos prantos.
- Por quanto ele te vendeu?
- Por mil e quatrocentos.
Seus olhos de diamante de repente ficaram desenhados em um olhar ferino, não menos belo.
Ela me acolheu num abraço quente e maternal, então todos os meus problemas tinham sumido. Aspirei o cheiro doce de seus cabelos sentindo-me no paraíso. Um paraíso efêmero.
- Vou dar um jeito nisso, querido - ela murmurou baixinho para que Giovanna não acordasse.

No dia seguinte, meu padrasto me tirou de casa para roubar alguma comida ou dinheiro. Fiquei sentado num barril e o observei tentando persuadir uma senhora a dar-lhe trocados. O sol teimava em não querer queimar minha pele.
Então, um brilho me chamou a atenção do lado esquerdo da rua.
- Carmen? - sussurrei.
Ela vinha com uma fúria incrustada nos olhos de diamantes. Usava um vestido preto de corte simples. Partiu meu coração vê-la naquele ambiente. Alexchander vinha logo atrás, tentando alcançar a esposa irreparável.
Quando mamãe encontrou meu padrasto, não consegui conter a tragédia: um tapa fora desferido nele enquanto Alexchander tentava parar sua fúria. Logo uma discussão se iniciou.
- ELE É APENAS UMA CRIANÇA! NÃO PODE VENDÊ-LO COMO UM OBJETO, SEU VERME! - gritou mamãe, fazendo todos ao redor pararem para ver.
Os homens se assustaram com a força dela. Eu corri até ela, abraçando-a sem perceber que as lágrimas caíam em minha face infantil.
Carmen parou de gritar por um momento e acariciou meus cabelos mal cuidados num ato de extremo carinho de despedida. Eu entendi que aquela seria a última vez que nos veríamos e a abracei com todas as forças que consegui, expulsando minha própria alma para que se mesclasse com a dela. Aquela foi a primeira e única vez em que soube o significado de "despedidas são difíceis".
Meu padrasto assistia a tudo querendo me esganar, mas Alexchander o puxou para um canto e conversaram de forma civilizada.
Carmen me afastou alguns centímetros para que pudesse ver meus olhos azuis marejados e começou a chorar também.
- Alex vai nos levar embora... - disse ela, entre soluços. - Eu e Giovanna...
Enterrei meu rosto novamente em seu vestido preto e chorei como nunca havia feito na vida.
- Eu te amo tanto, meu amor... - ela dizia, acariciando os meus cabelos num gesto que faria muita falta.
- Eu também te amo, mamãe! - respondi, olhando-a com uma cara inchada.
Depois de quase uma hora, ela foi embora definitivamente, amparada pelo marido, que dera uma quantia em dinheiro suficientemente grande para que meu padrasto mudasse de ideia quanto à minha venda pelo resto da vida. Mas de qualquer forma, eu queria Carmen, eu necessitava de Carmen para me manter são. Hoje sei que aquilo foi necessário para que eu pudesse ter o impulso certo na carreira de cantor.

Agora estou me preparando. Já me disseram que em cinco minutos aparecerei abrindo o evento com um de meus singles.

Passo os dedos no anel que Carmen me presenteara no natal e o coloco, junto com o pingente: meus amuletos da sorte. Uso a técnica de esvaziar rapidamente os pensamentos que aprendi com ela e subo ao palco.
Os aplausos animados preenchem o ar, junto com o grito enlouquecido de fãs famosas. Sorrio de canto e começo a cantar, sentindo a música se espalhar na minha alma.
Quando termino, mais um rompante de aplausos acontece e caminho em direção à plateia, indo sentar para aproveitar as premiações.
E no mesmo instante que subi o 19° degrau me deparo com algo que me paralisou.
Ali estava ela: olhar sedutor, batom ressaltando os lábios, uma cópia perfeita de Carmen senão fosse pelos cabelos escuros.
Ela me fitou e abriu um sorriso:
- Giovanni! Há quanto tempo! - disse Giovanna.
E eu sorri junto.