sábado, 19 de janeiro de 2013
Saint Mary-Ann
O tempo está lindo lá fora, não é mesmo, Mary-Ann?
Borboletas trotando
Abelhas colhendo o milho
Os tempos de loucura estão acabando
Eu vou ter alta
Eu vou ter alta
E continuar andando sozinho além da escuridão
A noite está tão clara lá fora, Mary-Ann
Aaaah, pare de me cutucar
A mulher tinha cabelo negros e me olhava com aqueles olhos vazios contrastantes com a pele cor de osso. Seu vestido branco e um pouco manchado de sangue não me amedrotavam, na verdade, a achava bela e inteligente.
- Venha, Mary-Ann, estou escrevendo sobre você. - sorri.
Ela deu um grito ensurdecedor abrindo sua boca internamente negra forçando o maxilar a quebrar. Eu ri, vendo-a se aproximar.
- Não precisa disso para chamar minha atenção. - falei, mostrando o caderninho.
Ela leu lentamente e sorriu para mim, mostrando os dentes serrados, pontudos e enegrecidos.
"Aaah falei que ela iria gostar" disse Samael.
"Nem precisava dizer" respondi de volta.
"Cale-se, Samael" retrucou Rafael.
- CALEM A BOCA! - berrei. - Nãão Mary-Ann, não é com você, minha querida! É com o Samael e o Rafael, aqui dentro... - apontei para minha cabeça. - Caalma, não gritei por querer... Ah, não chore... - peguei em sua mão extremamente fria. - Você quer deitar? Me desculpe por pegar sua cama, eles não conseguem te ver.
Ela sentou-se ao meu lado, seus olhos começaram a escorrer sangue.
- Não chore, minha linda. - peguei sua cabeça e a pus em meu ombro, ninando-a com delicadeza.
Karoline entrou em meu quarto com meus remédios. Mary-Ann assistia atenta. Tomei os remédios silenciosamente com os olhos vidrados. Karoline fitou minha mesa de trabalho.
- Belos chapéus... onde está aquele colorido? - indagou. Eu atirei o copo de plástico contra a parede.
- Dei para a Mary-Ann. Ela fica linda com cores vivas. - respondi, estressado.
- Mary-Ann está morta.
- Mary-Ann é mais viva do que muitos vivos por aí. Ela é uma menina doce e cheia de vida e amor. É a minha melhor amiga aqui.
- Ela está aqui?
- Sim, ela está apertando meu braço.
- Então ela não é uma pessoa boa se está te machucando.
- Ela está apertando meu braço porque tem medo de você.
Karoline pareceu engolir em seco.
- Mary-Ann não existe, não tem motivos para ficar com medo de mim.
- ENTÃO POR QUE FICASTE NERVOSA? - gritei, fazendo-a pular. - ME DIGA!
- Não fiquei nervosa, mas que droga. Não vou discutir com um retardado.
- EU NÃO SOU RETARDADO! VIM PARA CÁ PORQUE O MALDITO DO MARIDO DA MINHA MÃE ACHOU QUE EU ERA LOUCO POR VER A VADIA DA AVÓ DELE VAGANDO PELA CASA! - Mary-Ann agora chorava entre soluços em meu ombro, apertando meu braço como nunca, como se me impedisse de avançar na doutora. Eu não deixaria de acatar um pedido dela.
Karoline continuava com cara de idiota, nem ligava para o copo caído perto da minha mesa de trabalho.
- Você quer que eu pergunte a ela o motivo de ter medo? - perguntei, calmo.
- Não quero nada com os mortos da sua cabeça. - ela recolheu o copo e antes de sair, disse: - Ana Flavia virá daqui a pouco.
- SÉRIO? - exaltei-me junto de Mary-Ann. Ela adorava minha filha.
Ana era minha filha postiça, apesar de termos quase a mesma idade. Nos conhecíamos desde a infância.
- Estão te tratando bem aqui? - perguntou Ana, fitando as paredes brancas acinzentadas do meu quarto.
- Na verdade quase não falam comigo. Só a Mary-Ann que me faz companhia.
- Desde quando ver espíritos é loucura? Espero que quando chegar o século XXI essas coisas estejam muito bem enterradas nas memórias dos mais velhos.
- Duvido... - olhei para Mary-Ann, ela batia palmas enquanto vomitava um treco escuro e viscoso em enorme quantidade.
- Sinto frio do meu lado direito. É como se um iceberg estivesse do seu lado. - disse Ana.
- É só Ann. Ela é muito fria às vezes... principalmente quando está vomitando! - dei tapinhas em suas costas.
- Não se pode dizer o mesmo de você... - disse Ana, esfregando as mãos.
- Hein?
- Foi colocado neste quarto por mal comportamento! Sabe que os pacientes que vieram para esse, enlouqueceram muito mais e surtavam violentamente, não aguentando ficar aqui.
- Eles não sabiam apreciar uma bela companhia.
- Hm... se continuar assim, não vai ter alta nunca.
- E negar a existência da minha melhor amiga?
- Você pode leva-la para casa!
- Hm... - olhei para Mary-Ann. Ela pareceu gostar da ideia. - Certo.
- Te dou uma semana para se ajeitar.
- Estarei ajeitadinho e prontinho até lá. - sorri abertamente.
Quando ela foi embora, tomei banho e tentei parecer o mais apresentável possível.
Karoline veio ver como eu estava e se surpreendeu.
- Nossa, não sabia que iria a alguma festa. - ela disse.
- Que nada. - sorri. - Só quero ser mais apresentável. Ah, já te falei que cada vez menos estou vendo espíritos? - indaguei, confiante.
- Sério? Então está melhorando. Isso é bom. Irei repassar seu relatório ao diretor. - virou-se para sair. - Descanse.
- Obrigado.
Assim que ela saiu, Mary-Ann começou a dançar pelo quarto. Eu a aplaudi da cama e fui até a mesa de trabalho. Fazer chapéus era gratificante.
"Chapéus? Faça bandanas!" - disse Samael, inquieto e me mostrando texturas de cores mentalmente.
- Certo, farei bandanas também. O que você acha, Rafa?
"São lindas!"
Mary-Ann alegremente ficou tentando cantar, mas só conseguia sair algo esganiçado de sua boca. Ela ficara frustrada e começou a chorar copiosamente. Eu parei o que fazia e me virei para ela, olhando em seus olhos vazios.
- Ah, minha querida, eu gosto quando canta. Não se sinta frustrada.
Ela deu um belo sorriso e recomeçou a cantar agudamente.
- Você precisa de uma roupa bem colorida... Vou fazer um vestido novo pra você. - ditei, tornando minha expressão paterna.
Mary-Ann bateu palmas. Ela era tão simpática... como não gostavam de ficar perto dela?
- Você tem outro sapato? - perguntei.
Olhou para baixo por alguns minutos, então tornou a me fitar e acenar positivamente com a cabeça.
Duas semanas se passaram. Eu fingia não ver Mary-Ann quando Karoline ou o diretor vinham em visitar, ela entendia o motivo de ignora-la em tais ocasiões. Às vezes ela se incomodava quando Karoline passava a mão em meus cabelos e dizia "logo estará livre da gente", mas eu não ousava perguntar o por quê.
- Ele disse que eu vou ser liberado amanhã, Mary! - exclamei para minha melhor amiga, quando o diretor tinha saído do meu quarto. Ela pareceu preocupada, mas tentou mostrar-se feliz. - O que foi, minha Sweet Ann? -
Karoline bateu à porta e Mary-Ann soltou seu habitual grito grotesco que deixaria alguém normal de cabelo em pé.
- Olá, Karoline. - falei, atento.
- Vim lhe pedir para ir dormir. Amanhã será um grande dia para você.
- Tens razão. Devo mesmo me recolher. Obrigado.
- Não quer um remédio? - perguntou como quem não queria nada.
- Não aguento mais ver remédios na minha frente. - respondi, calmo. Mary-Ann parecia nervosa ao meu lado.
- Mas é só um remédio para dormir melhor. Não pode acordar no meio da madrugada.
- Eu não acordo no meio da madrugada, não se preocupe. Meu sono sempre foi tranquilo.
- Tem certeza? Tenho um ótimo.
- Eu já disse que não preciso. Por favor, me deixe dormir sossegado, estou me estressando.
- Certo. - deu-se por vencida. - Boa noite.
- Buona sera. - respondi e ela saiu.
Mary-Ann pareceu mais aliviada.
- Calma, vai acabar tudo bem. Amanhã, quando eu acordar vou te dar o vestido prometido.
Fui me deitar e pude contemplar pela primeira vez as estrelas através da janela.
"Não achaste suspeito a atitude da doutora?" perguntou Rafael.
"Eu ficaria mais esperto se fosse você" disse Samael.
"Por que ela faria alguma coisa contra mim? Se quisesse me matar, por exemplo, já teria o feito"
"Não duvide do diabo, pois o diabo não duvida de você" os dois disseram em coro. Arrepiei-me com tal frase, será que tinham razão?
Fitei Mary-Ann encolhida perto da minha cama, ela estava aparentemente tentando aguçar os sentidos atrás de qualquer perigo que pudesse aparecer.
- Até você, pequena? - perguntei. Ela virou pra mim e baratas saíram de sua boca. Seus olhos vazios e escuros como um abismo focaram-se em mim. - Não fique nervosa, vai dar tudo certo.
Minha visão desfocou de sono e pude descansar o corpo, pela primeira vez depois de chegar no sanatório.
Sonhos, sonhos... Encontrei Samael discutindo com Rafael sobre algo, apenas me aproximei e sentei na grama. Os dois costumavam brigar por qualquer coisa, afinal um era anjo e outro demônio, vai entender...
- Parem de brigar... - pedi, sonolento.
Eles me olharam por alguns segundos e então fizeram uma expressão que me fez levantar.
- Não é o grito da Mary-Ann? - indagaram os dois.
Acordei e vi Karoline numa versão monstruosa encima de mim. Antes que eu pudesse perguntar ou dizer alguma coisa, senti uma faca sendo cravada em meu ombro, com certeza estava mirada para o meu coração, mas o escuro noturno não permitia enxergar com clareza. Segurei seu punho para não ir mais fundo, visto que era sua intenção e a joguei para longe de mim.
Tirei a faca do meu ombro, pela pouca luz que a lua minguante concedia percebi o líquido vermelho brilhando na lâmina - que por sinal, denunciava ser de cozinha. Joguei-a para debaixo da cama.
- VOCÊ É MUITO CEGA! - berrei para Karoline, caída perto da minha mesa de trabalho. Havia batido a cabeça violentamente contra o pé de ferro da mesa. Mary-Ann a olhava com ódio... tanto que pela primeira vez fiquei com medo dela.
Sangrando muito e com dor, aproximei-me da doutora que tentava se levantar. Peguei sua cabeça com o braço bom e o rebati novamente contra o ferro, desta vez desacordando-a.
- Cuide dela, Mary-Ann... - pedi. Com a mão direita tentava impedir o sangue de sair e com a esquerda, apoiava-me na parede em direção ao quarto do inspetor do andar.
Bati à porta e logo fui atendido - eu sabia que Frank ficava até tarde jogando GTA ou Minecraft.
- Mas o que aconteceu com você? - pegou em meu ombro, preocupado.
- Primeiro cuide disso aqui, depois respondo... Mande alguém ficar de olho em Karoline...
- Agora eu sei o motivo da Mary-Ann ter ficado nervosa quando aquela doutora do demone veio me oferecer remédio. - ditei, contemplando os pontos no lugar do corte. Ana me fitava com revolta no olhar. - Huhuhu parece que sou um imã para hospitais.
- Não tem graça! Ainda bem que ela foi presa...
- Aliás, descobri que Mary-Ann foi morta por Karoline... só que como era ingênua, aceitou os remédios e morreu sem reagir. - bufei, levantando-me e vestindo a camisa.
- Como conseguiu joga-la tão longe?
- Esqueceu que eu era o mais forte da turma? - ri secamente.
- Claro que lembro. "Tão forte capaz de virar um carro de cabeça pra baixo". - devolveu o riso. Parecia que tínhamos fumado maconha.
Saímos do hospital e encontrei o carro de Victor nos esperando na garagem.
- VICTOR? - corri até ele como um cachorro que há anos não via o dono.
- Calma, Sr. Jones. - acariciou minha cabeça, dando um sorriso cínico. Ha, eu sabia que ele estava tão exaltado quanto o cachorro aqui.
- Quando chegou de viagem?
- Faz umas quatro horas.
- AAAAAAH QUE CARINO! Vindo aqui só pra me ver!
- Que tal entrarmos no carro?
Victor era um amigo de infância, como Ana.
Mary-Ann sentara-se ao meu lado no veículo. Usava o vestido colorido e uma sapatilha branca como sua pele.
O dia estava lindo, era maravilhoso ver a luz do sol livremente, sem médicos pra todo lado... Nem portões impedindo a aproximação do mundo exterior.
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